Se não sou a Polly Smith, quem sou?
– Mas que pergunta profunda – disse Oliver Fraddon.
Estavam ambos lado a lado, numa galeria em Somerset House, o edifício onde estava instalada a Conservatória do Registo Civil, com os registos de todos os nascimentos, casamentos e óbitos de todos os condados de Inglaterra.
– O mundo em ponto pequeno, pode dizer-se – continuou
Oliver, passando os olhos pelas estantes do chão ao tecto, repletas de milhares de grandes livros vermelhos contendo o movimento de milhões de vidas presentes e passadas. – Todos nós aqui anotados, capturados, imortalizados. Volumes cheios de nomes e identidades, de A a Z, simples e extraordinários. Nascemos, casamos… alguns de nós, pelo menos… e de cada vez somos inscritos aqui numa página. Uma ideia assustadora.
– Deixa lá a ideia assustadora, o que me preocupa é que não faço parte dos que estão aqui imortalizados — disse Polly.
– É bem verdade. Sugiro que voltemos à recepção e solicitemos a ajuda do anjo escrivão.
Tomou a dianteira, descendo a escada metálica em caracol e advertindo Polly para que tivesse cuidado. – Senão acabas como um novo registo nos Óbitos.
A funcionária atrás do comprido balcão central de madeira não possuía nada de angélico. Tinha lunetas presas a uma fina corrente e exibia um ar atormentado. Oliver interpelou-a. – Esta senhora parece ter desaparecido.
A funcionária olhou para Polly com uma expressão preocupada nos seus murchos olhos cinzentos, olhos que eram mais bondosos do que a sua boca crispada. – Valha-me Deus. Não consegue encontrar o seu registo? Não está no sítio certo? Diz que o seu apelido é Smith? Bem, há muitos Smith mas no fim só existe uma pessoa com o seu nome. Tudo se resume a ter as datas e o endereço correctos. Desde que não haja dúvidas sobre esses dados, acaba por aparecer. A não ser – acrescentou, a sua voz tornando-se mais aguda –, a não ser que seja estrangeira.
– Tenho ar de estrangeira? – perguntou Polly, indignada, não por se importar de ser tomada por estrangeira mas porque queria afirmar o seu direito de ali estar, registada entre os seus concidadãos, naqueles grandes livros vermelhos.
– Não, mas se tiver nascido no estrangeiro, mesmo que seja tão inglesa como eu e Mr. Grier além, não constaria dos registos principais da Conservatória mas de registos guardados noutro lugar.
– Nas regiões inferiores? – sugeriu Oliver ao ouvido de Polly. – A secção do enxofre, com diabinhos escrivães a correr de um lado para o outro?
– Não é o caso – disse Polly. – Nasci em Highgate. Bingley Street, número 11, numa transversal de Archway. A minha mãe ainda lá mora. A 1 de Maio de 1908.
– Só que não existe nenhum registo do nascimento dela no livro correspondente – acrescentou Oliver.
O anjo estava impressionado com Oliver, Polly via perfeitamente. Se fosse só ela ao balcão, com a sua velha gabardina e boina grená, ainda estaria à espera que a funcionária levantasse os olhos das fichas e dos papéis. Tinha sido Oliver, distinto cavalheiro dos pés à cabeça com o seu fato de bom corte, que lhe merecera atenção imediata. Pela sua simples presença. Não era justo. Mas era útil, disse consigo mesma. E, claro, assim que abria a boca, o sotaque dele anunciava que era um produto das classes superiores, com a natural autoridade que Eton e Oxford conferiam aos Olivers deste mundo.
E, assim, a mulher das lunetas tinha sido prestável. Acompanhara-os junto dos livros vermelhos e descobrira o que devia conter o registo de Polly. – Polly é o diminutivo de Pauline – disse ela à mulher mas não fez qualquer diferença. Não havia nenhuma mulher com o apelido Smith, primeiro nome começado por «P», nascida em Bingley Street, Highgate, no dia 1 de Maio nem no fim de Abril nem em meados de Maio. Havia um Thomas Smith, nascido em Priory Gardens no dia dois de Maio; era o que de mais próximo havia.
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