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PRÓLOGO
Há muitas coisas no meu passado que me custa recordar; ainda hoje choro quando me lembro de tudo o que me fizeram e disseram. As minhas memórias não são um consolo para mim, um lugar onde me refugie; são uma maldição.
A minha mãe era tudo para mim e passei a minha infância decidida a não lhe dar razões para pensar em mim senão como uma filha obediente, bem-educada e trabalhadora. Uma filha de que se orgulhasse, uma filha que pudesse justificadamente acarinhar. Uma filha que merecesse o seu amor.
Há alguns anos, quando finalmente falei a uma pessoa sobre o meu passado, ela disse-me, espantada: «Deves ter sido adoptada. Não pode, pura e simplesmente, haver outra razão; nenhuma mãe trataria a sua própria filha dessa forma. Porque é que não tentamos encontrar o teu processo da Segurança Social e descobrir quem era a tua verdadeira mãe, ver o que conseguimos apurar sobre o teu passado?»
Parecia tão simples, tão acertado. Claro que era isso que acontecera; como é que não me ocorrera antes? Explicaria muita coisa e responderia a todas as minhas perguntas. Abracei a ideia entusiasticamente e foi assim que, algumas semanas mais tarde, nos encontrámos as duas num gabinete, com lágrimas rolando-me pelas faces ao passar os olhos por um processo que explicava que não, eu não fora adoptada, fora retirada à minha família pela Segurança Social quando esta deixou de poder prover ao meu sustento e educação, e de novo entregue ao seu cuidado alguns anos mais tarde, quando me quiseram de volta. Desejava ardentemente sentir-me feliz a respeito da minha infância e pensara que esta ia ser a forma de reclamar esses anos; mas senti, pelo contrário, que o meu próprio passado me assaltava. Foram pessoas do meu próprio sangue que me bateram, espancaram, chicotearam, raptaram, forçaram a casar, estigmatizaram, ignoraram, humilharam e, pior que tudo, que não me amaram. Podia superar quase tudo, mas não isto: eu era uma menina, e desejava a única coisa que não me deram. Eu merecia amor.
Podem ler os primeiros capítulos de Casada à Força, de Sameem Ali, aqui.