Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

CHOCOLATE PARA A ALMA – LER NÃO ENGORDA

CHOCOLATE PARA A ALMA – LER NÃO ENGORDA

07
Jun10

COMECE A LER A NOITE É O DIA TODO

Rita Mello

 

 

 

A IGNOMINIOSA PARTIDA DE CHELLAM-A-CRIADA, FILHA-DE-MUNIANDY


6 de Setembro de 1980


A esticar-se, delicada como a cabeça de uma ave do fino pescoço do istmo de Kra, há uma terra que representa metade do país chamado Malásia. Onde mergulha o bico no mar da China Meridional, Singapura tremeluz como uma bolha que lhe tivesse escapado da garganta. Esta cabeça de ave é uma terra sem Primavera, sem Verão, sem Outono e sem Inverno. Um dia pode ser um nico mais chuvoso ou um poucochinho mais seco do que o anterior, mas quase todos são quentes, húmidos, claros, ardentes de preguiçosa vida tropical, instigadores de infindáveis pausas para o chá e de loucas, atropeladas e buzinadas corridas através da cidade para chegar a casa antes da chuvada da tarde. São estas as chuvas mais familiares, as violentas e prateadas cordas de água que inundam os campos de jogos e obrigam os empregados de escritório a patinhar até às paragens de autocarro com sapatos que se enchem como baldes. Turbulentas e dramáticas, as chuvas vesperais provocam engarrafamentos de trânsito simultaneamente terríveis – sufocados pelos fumos negros dos camiões e ensurdecidos pelo guinchar dos travões dos autocarros escolares – e belos, iluminados pelas coleantes serpentinas de luz amarelo-aguado dos faróis que se estendem a perder de vista, com o clarão azulado dos candeeiros a reflectir-se nas poças que alastram, com a fluorescente melancolia dos quiosques desertos ao longo dos passeios. Todos os dias parecem começar com uma labareda e acabar com um dilúvio, de tal modo que o passado e o presente e o futuro correm juntos num infinito e fumegante rio.

Na verdade, porém, há dias que não esbraseiam e chuvadas menos ferozes. Sob uma certa espécie de suave chuvisco matinal, a própria terra respira lenta e profundamente. A névoa ergue-se das escuras copas das árvores e das colinas calcárias que rodeiam Ipoh. Névoa cinzenta, refulgentes colinas verdes: em manhãs assim, é fácil perceber quão vividamente partes desta terra devem ter recordado aos antigos governantes britânicos o seu distante país.

A norte de Ipoh, agarrada à orla exterior dos pequenos arrabaldes da cidade, fica Kingfisher Lane, uma longa e estreita estrada de terra que vai da rua «principal» (uma loja de esquina, uma paragem de autocarro, um ou outro camião) até às colinas (antigas, inescrutáveis, crivadas de grutas e povoadas por clandestinos cavernícolas). Aqui, o lânguido bulício da cidade parece distante até nas tardes mais quentes; nas manhãs chuviscosas como esta, é absurdo, improvável. O fumo das fábricas de cimento e os cheiros acres da carrinha do vendedor de carne de porco e do peixeiro são varridos antes que tenham tempo de assentar, mas o ar húmido captura sons e cheiros nativos: a música crepitante de estática do rádio de um vizinho, o aroma doce e generosamente condimentado do caril de carneiro de um outro. O vale sente-se enclausurado e aninhado. Uma calma benevolência segura a manhã na concha da palma da mão.

 

Podem continuar a ler os primeiros capítulos de A Noite é o Dia Todo , de  Preeta Samarasan, aqui.

1 comentário

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Links

O Meu Outro Blogue

  •  
  • Editoras

  •  
  • Escritoras

  •  
  • Blogues

    Arquivo

    1. 2015
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    14. 2014
    15. J
    16. F
    17. M
    18. A
    19. M
    20. J
    21. J
    22. A
    23. S
    24. O
    25. N
    26. D
    27. 2013
    28. J
    29. F
    30. M
    31. A
    32. M
    33. J
    34. J
    35. A
    36. S
    37. O
    38. N
    39. D
    40. 2012
    41. J
    42. F
    43. M
    44. A
    45. M
    46. J
    47. J
    48. A
    49. S
    50. O
    51. N
    52. D
    53. 2011
    54. J
    55. F
    56. M
    57. A
    58. M
    59. J
    60. J
    61. A
    62. S
    63. O
    64. N
    65. D
    66. 2010
    67. J
    68. F
    69. M
    70. A
    71. M
    72. J
    73. J
    74. A
    75. S
    76. O
    77. N
    78. D
    79. 2009
    80. J
    81. F
    82. M
    83. A
    84. M
    85. J
    86. J
    87. A
    88. S
    89. O
    90. N
    91. D
    92. 2008
    93. J
    94. F
    95. M
    96. A
    97. M
    98. J
    99. J
    100. A
    101. S
    102. O
    103. N
    104. D